Meia 92

Dos ecos do Eca à Psicanálise: entre a lógica do bem-estar e a ética do bem dizer

psicanalise

Livro escrito pela psicanalista Michele Donizete Ferreira Borges será lançado este mês em várias cidades do País

 

Publicado pela Calligraphie Editora, o trabalho é fruto da pesquisa de mestrado da autora e parte de inquietações advindas da sua experiência clínica com a escuta de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional e de outras duas experiências como psicanalista em instituição de acolhimento. “Por cerca de oito anos, atendi em meu consultório diversas crianças e adolescentes em estágios diferentes desse processo. Algumas eram recém-chegadas, outras se encontravam aí há um longo tempo, tendo inclusive passado por muitas instituições diferentes. Havia aquelas que estavam no momento de recolocação em família substituta, assim como as que tinham sido devolvidas ao acolhimento depois de um período de convivência com a família substituta. Também atendi àquelas cujo

processo era interrompido ainda no período de aproximação. No decorrer dos anos foi possível escutar como a violência se fazia presente na vida

dessas crianças e adolescentes, cada uma à sua maneira. A partir da oferta de um espaço de fala e escuta, essas histórias podiam ser contadas, elaboradas e ressignificadas”.

A autora reforça que não se trata de pensar a psicanálise como única forma possível de pesquisa, mas do que se pretende com ela. “Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é pensar quais as contribuições que a psicanálise pode trazer para as instituições de acolhimento, no sentido de como é possível ao analista extrair, da lógica do bem-estar, a ética do bem dizer. Assim, não havia outra forma de pesquisar que não fosse a escuta dos  sujeitos.”

“Michele Borges percorre a história, as normativas do direito de crianças e adolescentes, a tragédia grega e a psicanálise e, com base nelas, dialoga com uma importante base empírica localizada

Michele Donizete Ferreira Borges

por meio do seu próprio exercício profissional, chamando atenção em especial para a (não) escuta de crianças e adolescentes. Sem se deixar afetar de maneira negativa pelos desafios e limites institucionais e do próprio período da pandemia presente na maior parte de toda a trajetória da pesquisa, faz deles suporte para pensar criticamente os seus achados e organizá-los de maneira a visibilizar realidades de crianças e famílias que constantemente têm seus direitos violados e chamar a atenção de que pensar a “prática orientada pela ética da psicanálise, para além do seu exercício clínico, é também fazer resistência ao exercício de poder”. Entre tantas das importantes contribuições da pesquisa, destaca-se a preocupação da autora em valorizar a potência da escuta, em “ressignificar a violência e desvelar o lugar da infância nos discursos”, convidando profissionais que atuam em instituições a “fazer juízo de seu próprio fazer, como uma possibilidade de não paralisar diante das impossibilidades da instituição, nem se cristalizarem como ferramentas de uma engrenagem – o Estado – de violência”, ressalta Eunice Teresinha Fávero, coordenadora no Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos do PPGSS/PUCSP e que também assina a orelha do livro.

O psicanalista Raul Albino Pacheco Filho (PUCSP), orientador da pesquisa, também assina o prefácio. “O livro traz um resumido percurso da história do acolhimento de crianças e adolescentes no Brasil, partindo da colônia até a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sancionado em 13 de julho de 1990, e acompanhando também os desdobramentos posteriores, buscando resgatar as concepções e práticas do Estado no modo de lidar com a criança e o adolescente necessitados de acolhimento estatal. Comparecem nessa retomada tanto o entendimento do menor; considerado perigoso para a sociedade quanto o vulnerável; que precisa ser protegido. Mas o foco mais original do livro não é esse, da denúncia do retrocesso político, e sim o que busca interrogar como é possível sustentar o discurso analítico, a escuta do sujeito do inconsciente e do desejo e a sua responsabilização no âmbito da rede de instituições estatais encarregada do acolhimento de crianças e adolescentes regida pela lógica do bem-estar. Suas perguntas instigantes são as seguintes: Como se inserir na equipe de trabalho sem ser engolida pela dinâmica institucional? Como promover trocas entre a equipe para operar mudanças sem ficar no lugar do que sabe o que é melhor para equipe, crianças e adolescentes? Como reconhecer as demandas institucionais, sem cair na cilada de tentar atendê-las? Como sustentar o trabalho institucional sem incorrer no erro de reproduzir o modelo de atendimento clínico?”.

A capa do livro também é um registro importante. Elaborada pela também psicanalista Thaina Oliveira que nos fala sobre a inspiração da criação.  “A centralidade da arte se situa em Sankofa, Adinkra africano do pássaro que volta sua cabeça sobre a própria cauda para resgatar o ovo perdido. Sankofa, aqui, é a premissa ética de que não é errado voltar para resgatar o que foi esquecido. De fato, o sobrevoo pela história do acolhimento no Brasil se constitui como mesmo movimento, onde é possível desvelar e se debruçar sobre o que fica no esquecimento, convenientemente, desta história: o papel estruturante do racismo e o papel indelével das lutas negras pelo direito de viver, criar e manter seus laços. Nesse ponto, Sankofa pode ser pensado como um movimento correlato ao de uma análise: é somente retornando ao passado, buscando os elementos que ficam esquecidos ou conscientemente deixados para trás, que é possível ressignificar o presente e construir outro futuro”.

O livro será lançado nas cidades do Rio de Janeiro (18/10), São Paulo (26/10) e Curitiba (8/11), onde também acontecerá uma mesa de debates na Universidade Tuiuti do Paraná, em parceria com a Pós-graduação em Psicanálise Clínica. Também estará disponível para compra no site da editora:

www.calligraphieeditora.com.br.

Para saber mais sobre o tema, ouça a entrevista completa com a autora no Spotify do Projeto Entre Elas, episódio 106.

 

Patrizia Corsetto é jornalista, radialista e psicanalista e assina semanalmente a coluna de cultura.

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